quarta-feira, novembro 02, 2005

Bifurcação

Na cidade não havia tempo para arrependimentos. Tudo corria segundo uma estranha ordem natural que era imposta às pessoas como um fardo. Alguém gritar na rua, castigo, toda a gente a olhar, alguém a fumar no autocarro, castigo, rua, ir de cuecas para o trabalho, pena, manicómio. As manhãs de Nuno não diferiam em muitas das de todas nós, o café com leite, quando ficava sem leite era chá, a preparação do cigarro para depois da paragem no café e o caminhar parcimoniosamente até à escola, onde estudava direito por obrigação familiar. Demorava cerca de vinte minutos este percurso matinal, até descobrir um mais curto com a duração de quinze minutos. Foi com o correr dos dias, variando entre os dois conforme a disposição. O caminho mais longo atravessava o centro da cidade em curvas cotovelo, descidas e subidas íngremes. Cruzava-se neste percurso com multidões de pessoas ainda atordoadas pelo relâmpago do despertador, mães desesperadas com os bebés ao colo correndo para as creches, executivos agarrados aos telemóveis, e estudantes que como ele, caminhavam com pressa ou não. Mas os mais interessantes eram aqueles que pairavam no ar, sem nenhuma marca característica, de vestuário ou atitude, largavam os passos aleatoriamente pelo passeio, com a cabeça em lugares inimagináveis; reconhecia-os pelo olhar, fixo num ponto invisível para lá do que os olhos podem alcançar. Depois havia a rapariga da pastelaria, que tinha as bolas de berlim mais recheadas de creme da cidade, que não estava incluída em nenhum dos blocos de pessoas que formava na cabeça para se entreter, mas que lhe produzia uma sensação que ia descendo pelo pescoço até ao estômago. O caminho mais curto, pelo contrário, era uma interminável avenida de semáforos tristes, de condutores agarrados a filas, com buzinas, fumos, tinta pelo ar, buracos de choques, pinças de cruzamentos e encruzilhadas com cheiro a bode velho; gostava deste caminho porque nas manhãs regadas com noites de insónias, podia facilmente caminhar com os olhos presos no chão sem motivo para os erguer, seguindo simplesmente a recta de paralelos do passeio.

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