A madrugada estende o seu véu negro rastejante pela cidade. Espreguiço-me no sofá. Os olhos pousam sonolentos no écran da televisão sem prestar realmente atenção; as pupilas dilatam-se com os raios de cor, luz e uma sensação de inércia que assimilei como agradável invade-me. Sei os horários e os canais dos melhores programas pela-noite-dentro. Mudo para a Sitcom que vai começar, mudo para os programas de animais, documentários históricos, biografias, publicidade que me faz chorar, filmes que me fazem rir, milhares de pontinhos luminosos a congestionarem o cérebro sem nenhum esforço da minha parte. Mudo novamente. Mortos no Iraque, fome em África. Tenho tudo que preciso aqui neste sofá. Conto cinco segundos, cinco crianças mortas à fome, conto um minuto, um petroleiro faz uma descarga ilegal, conto para sentir o meu tempo a passar, o meu corpo a envelhecer, a morte a chegar. Rebeldes num país esquecido, praticam genocídio por vingança de anos de escravidão; a última contagem era de quatro mil degolados, centenas de mulheres violadas e corpos de crianças espalhados pelas ruas em torrentes de sangue. “Os rebeldes andam de aldeia em aldeia a matar tudo que respire.” Um homem com os olhos cansados desenraizados agarra com ferocidade um microfone. “Degolam mulheres e crianças”. Esfrego as mãos e bebo um trago de água gelada. Em rodapé: O líder dos rebeldes aceitou ser ouvido pela ONU. Em rodapé: Líder rebelde abre corredor para comboios humanitários, mas não garante a sua segurança. Carrego impaciente no botão. Uma bela mulher, bela demais para ser mulher de alguém, remendada artificial, é demais para usar avental, anuncia um pacote instantâneo que basta pôr no micro ondas dois minutos para termos um belo jantar.
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