sexta-feira, fevereiro 27, 2009

O outro lado do espelho

Oliveira vivia no meio do reboliço citadino num pequeno prédio de dois andares no centro da cidade, mas a verdade é que poucas vezes saia de casa e se confrontava com a agitação, permanecia como um recluso, fechado no seu pequeno mundo, com os seus livros, os seus apontamentos e a sua colecção de citações que engrossava todas as semanas. Vivia de um pequeno subsídio de invalidez dado pelo estado o que lhe permitia pagar a renda, comer e comprar alguns livros. Oliveira tirou a roupa três vezes no banco onde trabalhava, sem motivo aparente subia para cima do balcão e começava a desabotoar a camisa, tirar os sapatos e a desapertar o cinto e só nunca terminou o seu propósito porque os colegas vinham a correr tampando-o com impressos de depósitos e formulários de empréstimos. Da primeira vez esteve de baixa seis meses, na segunda um ano com os episódios de nudez a repetirem-se sempre que voltava ao serviço, até que da terceira vez desistiram dele, atribuíram-lhe uma pensão vitalícia e afastaram-no para longe da solenidade bancária. Eu sempre duvidei que a saúde mental de Oliveira fosse assim tão diferente da maioria de nós, mas quando se opta por tirar as roupas em frente a uma velhinha enquanto se lhe entrega a pensão, o mundo assume que passamos definitivamente para o outro lado do espelho.

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Livros apreendidos

Ao ver o título a “A censura está de volta”, no jornal Público, título provocativo e demasiadamente abrangente, julguei ter lido mal, pensei que o lápis azul iria voltar aos textos de escritores, músicos e que todos artistas voltariam a ser perseguidos pelas suas criações (depois do episódio Magalhães no carnaval julguei mesmo que era coisa séria). Mas depois de ler com atenção a notícia e de ver hoje o seu desfecho, concluí que apenas se tinha tratado de um episódio da saudosa série portuguesa de marionetas “Os amigos de Gaspar” e da maravilhosa personagem do guarda Serôdio.

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

O indivíduo e o colectivo

Ao ouvir certas pessoas falar, ficamos com a ideia que a humanidade é tudo que lhes interessa e o bem-estar do seu semelhante um ideal que perseguem, mas depois, e quando confrontadas com a individualidade, são incapazes de a acolher com ternura e fraternidade. É-lhes difícil lidar com o indivíduo isolado, por isso defendem-se no abstracto. A essas pessoas o indivíduo aparece-lhes como feio e deformado. Já humanidade é um conceito que abraçam facilmente, isto por ser uno e não reagir, é impávido e sereno, repousa em terrenos sagrados para lá do entendível. Ao contrário, o conceito de indivíduo pode ser repartido em biliões de partes (uma para cada pessoa) e dificilmente encaixado num sistema seja político ou social, é inqualificável por isso não perceptível. Nunca compreendi como se pode sentir amor pela humanidade e ao mesmo tempo repugnar a individualidade, mas este foi um critério muito comum na história da humanidade, principalmente no século passado, tanto nos regimes comunistas com a ideia do bem comum, tanto dos fascistas abafando o indivíduo em nome da pátria e afins. Se olharmos com atenção, a própria declaração dos direitos humanos, é um documento que dificilmente representa todos os indivíduos e as culturas em que se encerem, mas que repousa na ideia ingénua de que todos somos iguais e regidos pelas mesmas leis e valores e isso parece discutível, por muito duro que possa parecer, mesmo a um apoiante dessa declaração. Assume-se então que um conjunto de indivíduos representa o conceito global de humanidade, mas nunca que a humanidade depende da individualidade de cada um. Por outro lado, quando a sociedade valorizou o indivíduo, este elevou-se ao extremo e, empoleirado em torres de marfim, rodeado de ouro, atirou moedas ao ar. Hoje vivemos na democracia, o melhor dos sistemas políticos possíveis, mas ainda assim, num sistema do salve-se quem puder, da ausência de valores comuns, do egocentrismo, da cunha e da corrupção. O indivíduo passa a ser um estado em si mesmo, tirando o que pode e como pode, as leis são cumpridas apenas pelo medo da sanção e a abundância de ouro permanece como a derradeira justiça.

sábado, fevereiro 21, 2009

De que precisam os nossos filhos para serem felizes?

De que precisam os nossos filhos para triunfar na vida? Que instrumentos indispensáveis necessitam para puderem seguir o seu rumo? Estas são as perguntas que mais faço quando olho para a minha filha e suponho que a maior parte dos pais faz. A sociedade actual é competitiva ao extremo, atribuindo à possessão de objectos um valor que extravasa em grande medida o seu real valor. Claro que necessitamos de dinheiro para termos tranquilidade e conforto, mas não competindo uns com os outros como hienas em volta de uma presa, desesperadas por conseguirem o seu pedaço, mas todas de barriga cheia. A crise económica que o mundo atravessa é reflexo dessa ganância de consumo e da vitória sobre os demais, não se pestaneja em calcar o semelhante se isso trouxer dinheiro, não conforto, não tranquilidade, só dinheiro, consumo e estatuto. Individualmente não temos limite na possessão; mais, mais e mais parece ser a palavra de ordem, enquanto outros gritam por um pouco, um pouco, um pouco. Esta competitividade está a ser passada às crianças que irão ter ainda mais dificuldades em impor-se num futuro que se lhes apresenta sombrio. Por isso tentamos dar-lhe as melhores escolas e educação, mesmo que com isso tenhamos de fazer muitos sacrifícios. Estarão elas preparadas para um futuro de abutres? Como se prepara uma criança para um mundo de pesadelos consumistas? Devemos incutir-lhe essa moral da conquista individual ou invés ensinando-os a respeitar os outros como seus iguais, a serem empáticos e solidários? Prefiro claramente a segunda hipótese, parece-me que se o caminho continuar a ser a vitória individual em deterioração da ascensão colectiva, o fim da humanidade espreita ao virar da esquina. O que lhes transmitem no ensino privado? E nas públicas? Que valores lhes incutem nas escolas onde os deixamos todos os dias? O caminho mais duro é o da igualdade que origina por inerência a justiça social, mas é o único possível para uma sociedade futura, solidária e pacífica. De que precisam afinal os nossos filhos para serem felizes?

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Regresso a casa

O problema dos antigos combatentes é antigo e comum a quase todas as nações. Ouvi uma reportagem na T.S.F sobre como eram ignorados os ex-combatentes portugueses quando regressaram ao país depois de lutarem no ultramar, a história é antiga e todos a conhecemos, mas hoje fez-me pensar em todos os soldados que combatem fora do seu país. A ideia de lutar pelo país fora do próprio país, por muito que a tente assimilar, não deixa de soar de maneira estranha, assim, pode-se lutar por interesses do país, mas pelo país em si como nação independente não, isso não é possível a milhares de quilómetros de casa. Depois o facto de um país em guerra, fora das suas fronteiras, ser sempre um país dividido, uma parte da população apoia a guerra, outra repudia-a, e quando a guerra é longa e dolorosa, como foi o caso português, a segunda parte da população acaba por impor a sua moral sobre os que apoiam a guerra, e foi nessa conjuntura adversa à guerra que os soldados portugueses regressaram a casa. No caso de Portugal a situação ainda contém em si a efervescência da revolução, onde não apenas a moral anti-guerra se tinha sobreposto à colonizadora, mas toda a situação política a dar uma volta de 180 graus. Foi neste contexto que os combatentes e as famílias portuguesas das ex-colónias regressaram à pátria; o final não podia ser feliz. Suponhamos agora que os soldados vão em ajuda de um terceiro país como no caso americano na primeira e segunda guerra mundial, nessa perspectiva e quando a situação é moralmente justificada, esses soldados são bem recebidos tanto nos países para onde vão, como ao regressarem ao país de origem; não foi o caso português, nem o dos Estados Unidos no Vietname, nem no caso actual do Iraque onde as mentiras espalhadas aos quatro ventos se sobrepuseram ao acto da libertação. Já no caso do Kuwait e Afeganistão, a situação para os soldados regressados parece pacífica e aceite com tranquilidade pela maior parte, devido à acção de libertação de um povo em vias de ser oprimido no primeiro caso, e a segurança do país de onde os soldados provêm estar ameaçada, assim parece, no segundo caso. Não me quero debruçar sobre os aspectos políticos do conflito e sobre a sua legitimidade legal, mas sim sobre o regresso a casa dos soldados que entram nestes diversos conflitos. Com a mudança de governo nos Estados Unidos, os soldados que agora lutam no Iraque, não podem esperar grandes festejos no seu regresso a não ser que isso signifique o fim da guerra, já que o rumo político foi alterado e dá a entender por meio de sinais mais ou menos evidentes a ilegitimidade da guerra. Mas esses ecos, de uma maneira ou de outra, só vão ser sentidos daqui a algum tempo.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

A banalidade do mal

Quando ontem saí do cinema depois de ter visto “O Leitor”, uma frase martelava-me a cabeça. Kate Winsley no tribunal a ser julgada por crimes contra a humanidade dizia algo como isto: “Eu só fazia o meu trabalho, as mulheres estavam sempre a chegar e não havia lugar para todas, tínhamos de escolher algumas para ir embora”. Esse ir embora significava as suas sentenças de morte, as câmaras de gás. Este sentido de dever obstinado de estar apenas a fazer um trabalho, independente do rolo compressor que é alimentado por ele, é algo que a sociedade actual parece promover, não como é óbvio com o apagamento completo da nossa empatia face aos outros, nem mesmo banalizando o mal, mas mesmo assim demasiadamente impessoal e perigoso, executamos pequenas partes de um todo que muitas vezes não temos ideia onde acaba. É a razão que nos faz humanos, mas é também a razão em limites desproporcionais e levada ao limite lógico, como no holocausto, que alimenta o mal e o enquadra. Adolf Eichmann era um burocrata, tinha ordens explícitas de Hitler para resolver o problema da sobrelotação nos campos de concentração, então, racionalmente, ele executou as ordens, como quem passa uma factura, ou escreve uma carta a pedir material. A suposta inferioridade dos judeus não era o maior argumento para o seu extermínio, mas sim a falta de espaço e de mantimentos que tinha de ser resolvida. Os campos de concentração eram eficientes, como uma máquina produtiva, desumanamente eficientes. Era assim que as pessoas eram tratadas, como mercadorias, onde a dignidade lhes era retirada sobrando apenas o número, tatuado na carne ou impresso em documentos de remessa. Sem equiparações, recordo com este texto uma frase que ouvi no sábado à noite no documentário que passou na RTP2, Fahrenheit 9/11, de Michael Moore, onde um soldado destacado no Iraque dizia para as câmaras, algo como isto: “Eu pensava que era tipo jogo de computador, carregar em botões e pronto. Nunca imaginei que pudéssemos ver cadáveres de mulheres e crianças a apodrecer nas bermas das estradas. Isto é demais”, será que lhe passou em algum momento pela cabeça concluir com: Não ganho para isto.

sábado, fevereiro 14, 2009

Hannah Arendt


Uma pérola da literatura que se tinha escondido da minha curiosidade até ao dia de hoje. “Homens em tempos sombrios”, de Hannah Arendt, é uma viagem de pontes entre homens de génio, revolucionários, apátridas, poetas e filósofos encravados no seu tempo, no seu triste tempo. Mas na busca de Arendt só a humanidade parece interessar, apenas o desocultar da humanidade, escondida do espaço público, pelas obras maiores de cada dos seus homens. A escrita de Arendt nem sempre é simples e facilmente descortinada, mas quando o texto se liberta de análises filosoficas duras, chega a comover, e ao longo do livro, Arendt aponta direcções e desembaralha incorrecções no novelo da vida de homens como Lessing, Walter Benjamin, Bertold Brecht ou Hermann Broch, que “foi poeta à sua própria revelia” e mulheres como Rosa Luxemburgo, a revolucionária polaca, ou Karen Blixen e a sua Xerazade interior, Arendt encontra peculiaridades escondidas, traços que escaparam aos biógrafos, pequenas minúcias que espantam pela análise certeira e perspicaz. “Homens…” está ao nível da melhor literatura que conheço, ao jeito de Borges que estranhamente, ou talvez não, me veio à memória mal entrei nas primeiras linhas deste… romance? “Homens...” é uma concha recheada de belíssimas pérolas sobre a realidade que escapa aos sentidos.

“Homens em tempos sombrios” – Hannah Arendt
Colecção Antropos – Relógio D’Água