A chuva não parava e este inverno tinha sido, segundo a sua memória, o mais húmido e ventoso de sempre. Pelas botas pretas e cansadas, a água das poças entrava como num bueiro, mas comprar outras no fim da estação era um gasto extraordinário a que não se podia permitir. O seu chapéu de flanela cinzenta escura também conhecera melhores dias, assim como o sobretudo de tons igualmente escuros e já sem forro que teimava em não largar, para dar lugar ao novo, estacionado no cabide, oferecido no Natal pela filha. Apesar de tudo o velhote apresentava um aspecto harmonioso e nada desinteressado. Para isso contribuía a bengala com o cabo em forma de cabeça de pato em osso maciço, de um branco tão reluzente que, como uma pedra preciosa, equilibrava o conjunto, transmitindo a quem o via passar, a sensação de um velhote calmo aceitando o destino cruel da idade mas sem perder o seu rumo e dignidade.
Dava os seus passeios pela cidade que conhecia como a palma das mãos, isto antes de a começarem a desventrar com bulldozers e martelos hidráulicos. Agora já não acertava nas esquinas nem nos bancos dos jardins que continuavam inacessíveis. Ignorava para onde tinham levado os patos do jardim da Cordoaria, e desconhecia o paradeiro dos seus companheiros de sueca. “ Estão a abrir buracos para nos enterrar a todos”, diziam os velhotes colados à vedação, entretidos a ver o pessoal novo a trabalhar. O nosso velhote nada tinha a ver com os outros, acreditava no progresso e numa nova cidade, e tudo que saia no jornal e na televisão eram apenas encruzilhadas que mais cedo ou mais tarde se haviam de desfazer; o problema era o tempo que não lhe era favorável. Gostava de um dia ver a nova cidade.
Tudo passava rápido de mais para o seu corpo adormecido. A gente nova corria de um lado para o outro como formigas, entrando e saindo dos autocarros, atravessando as ruas fintando os carros, comprando prendas nas lojas, acendendo um cigarro apressado, engolindo refeições baratas ou tomando, de pé junto ao balcão, cafés atrás de cafés...o velhote parava, por vezes parava. Encostava-se a uma esquina e deixava o fluxo da cidade seguir o seu rumo. Quando se sentia mais dinâmico entrava na estação dos comboios e, depois de admirar os azulejos, sentava-se junto das linhas vendo as pessoas correndo atrasadas para os comboios. Quantidades intermináveis de pessoas surgiam do nada quando o apito finalmente tocava, agarradas a telemóveis, que na cabeça do velhote, eram comunicações para as pessoas amadas, crianças com as mãos fincadas nas saias das mães, assustadas com a anárquica movimentação. Passava horas sentado naquele banco de madeira verde erva, carcomido pela húmidade e facadas de juras de amor eterno. Sentado, via a cidade correr em frente aos seus olhos, compensando o seu inconveniente cansaço. Sentia apenas saudades da mocidade, pela agilidade do corpo, não por andar a correr de um lado para o outro como aquela gente, e se de alguma coisa se arrependia, era ter feito precisamente o mesmo que eles; acabou por achar que as pessoas não têm consciência que a velocidade é proporcional ao desespero, e explicava à filha: “Sempre a correr não temos tempo para apreciar nada, é como quando viajamos num comboio e pela janela apenas vemos raios de cor demarcando a paisagem,” e concluía nostálgico, “pena só me ter apercebido disso tarde de mais”.
Dava os seus passeios pela cidade que conhecia como a palma das mãos, isto antes de a começarem a desventrar com bulldozers e martelos hidráulicos. Agora já não acertava nas esquinas nem nos bancos dos jardins que continuavam inacessíveis. Ignorava para onde tinham levado os patos do jardim da Cordoaria, e desconhecia o paradeiro dos seus companheiros de sueca. “ Estão a abrir buracos para nos enterrar a todos”, diziam os velhotes colados à vedação, entretidos a ver o pessoal novo a trabalhar. O nosso velhote nada tinha a ver com os outros, acreditava no progresso e numa nova cidade, e tudo que saia no jornal e na televisão eram apenas encruzilhadas que mais cedo ou mais tarde se haviam de desfazer; o problema era o tempo que não lhe era favorável. Gostava de um dia ver a nova cidade.
Tudo passava rápido de mais para o seu corpo adormecido. A gente nova corria de um lado para o outro como formigas, entrando e saindo dos autocarros, atravessando as ruas fintando os carros, comprando prendas nas lojas, acendendo um cigarro apressado, engolindo refeições baratas ou tomando, de pé junto ao balcão, cafés atrás de cafés...o velhote parava, por vezes parava. Encostava-se a uma esquina e deixava o fluxo da cidade seguir o seu rumo. Quando se sentia mais dinâmico entrava na estação dos comboios e, depois de admirar os azulejos, sentava-se junto das linhas vendo as pessoas correndo atrasadas para os comboios. Quantidades intermináveis de pessoas surgiam do nada quando o apito finalmente tocava, agarradas a telemóveis, que na cabeça do velhote, eram comunicações para as pessoas amadas, crianças com as mãos fincadas nas saias das mães, assustadas com a anárquica movimentação. Passava horas sentado naquele banco de madeira verde erva, carcomido pela húmidade e facadas de juras de amor eterno. Sentado, via a cidade correr em frente aos seus olhos, compensando o seu inconveniente cansaço. Sentia apenas saudades da mocidade, pela agilidade do corpo, não por andar a correr de um lado para o outro como aquela gente, e se de alguma coisa se arrependia, era ter feito precisamente o mesmo que eles; acabou por achar que as pessoas não têm consciência que a velocidade é proporcional ao desespero, e explicava à filha: “Sempre a correr não temos tempo para apreciar nada, é como quando viajamos num comboio e pela janela apenas vemos raios de cor demarcando a paisagem,” e concluía nostálgico, “pena só me ter apercebido disso tarde de mais”.
1 comentário:
texto excelente, muito visual, de uma simplicidade eficaz
parabéns pelo blogue
um abraço
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