sábado, setembro 24, 2005

O palácio (primeira versão final)

O Palácio Botelho herdou o nome do seu mais famoso inquilino, o Conde Botelho. O conde foi o último dos grandes boémios portugueses que o século XIX conheceu. O palácio deve igualmente ao conde o seu grande apogeu ocorrido nas últimas décadas do século XIX e inícios do século XX. Nessa altura os jantares eram iluminados por candelabros de Paris e incenso da Índia e pelos sumptuosos salões, políticos faziam politica enquanto namoriscavam donzelas ao som das valsas de Strauss. Era o local portuense onde as soirres eram mais sofisticadas e desejadas. Pelos portões dourados, magnificentes coches de seis cavalos trotavam ocultando os seus ilustres convidados. Já em pleno século XX, o palácio, viria a conhecer uma lenta degradação, abandono e por fim o esquecimento, tudo em parte pela ruína financeira do conde que não entrou no século novo com tinha saído do antigo.
Quando foi comprado ao estado pela construtora Alves & Alves Lda., um século depois do conde, o palácio estava velho, o telhado desfazia-se pelas intempéries, as paredes bamboleavam ao sabor dos camiões que atravessavam a rua e pedras seculares desmaiavam pelos cantos das salas do segundo andar, só recordando os tempos áureos, a alguém com uma imaginação muito fértil. Mas a zona onde estava situado, a enormidade do terreno que ocupava e a beleza exterior do edifício, fez dele um negócio apetecível que os gémeos da Alves & Alves, não deixaram escapar; só a fachada restaria do palácio e falou-se em condomínio fechado com garagens individuais e piscina. Este episódio tinha ocorrido há quase três anos, escritura, papéis assinados, licença de obras, tudo arrastado até ao início da reconstrução que começou há uma semana com uma limpeza interior. Contratou-se uma empresa para retirar entulho, arrebentar soalhos, raspar paredes, arrastar móveis e começar desde já a deitar abaixo algumas paredes que não implicassem a sustentabilidade do edifício. Tudo corria bem até os trabalhadores contratados se começarem a queixar dos exércitos de pulgas aranhas ratos que trepavam pelas pernas e se infiltravam na roupa interior, causando comichões vermelhões irritações e sabe-se-lá-que-mais, obrigando-os a tirarem a roupa cinco vezes por dia e procurar os desagradáveis bicharocos nas cuecas meias e virilhas. Contactou-se uma empresa de desinfecção e este vosso humilde narrador e escriturário da Alves & Alves, foi a pessoa encarregada de abrir as colossais portas de dois metros e meio em madeira maciça ao exterminador, já que por esta altura o pessoal contratado se recusava, alegando saúde pública e privada, a por lá os pés até a situação estar controlada e um perímetro de segurança levantado.
A construtora Alves & Alves foi criada no início do século XX pelo avô dos actuais gémeos Alves, se bem que no início se chamasse Construtora & Imobiliária Alves Lda. e fosse apenas um pequeno escritório no centro da cidade. A firma expandiu-se durante a segunda metade do século passado graças ao seu grande impulsionador, o pai dos gémeos, que elevou a firma até um décimo andar num prédio da zona mais cara da cidade; não posso esquecer de falar no meu pai. Hoje em dia são os gémeos que gerem a firma. E que posso eu dizer dos gémeos da Alves & Alves L.da? Que os odeio? Odeio-os? Mas porquê? Agora sim, pelo meu pai? Por mim? Será pelo meu pai que morreu com sessenta e oito anos de ataque cardíaco cercado de contratos imobiliários sem nunca lhe ser reconhecido o mérito? Que morreu sozinho na secretária que ocupou durante meio século, não sem antes arranjar trabalho para o alienado filho? Que odeio os gémeos, o seu jeito superior, os fatos garridos pirosos, os carros e as mulheres deles? Que desprezo os gémeos pela minha mãe e pela minha irmã? E que posso mais dizer sobre os gémeos? Que são diferentes um do outro como água do vinho? Que um é gordo e o outro é magro, um forte outro fraco? Que o gordo empurra o fraco e o magro acolhe o forte? Que funcionam em cunha? Posso começar por dizer que fisicamente nada têm de semelhantes. Poderia também dizer que ambos têm à sua maneira o dom da multiplicação do dinheiro e tal Midas, o fardo de transformarem em ouro tudo que tocam. Poderia satisfazer o meu asco e dizer que o ouro resvala para a merda como o milho para estrume? Não, não me quero alongar em afrontas e insultos. Vou então, e só para terminar e passarmos sem demorar para a porta do palácio, onde aguardo o exterminador, dizer que nada do que vos contei, me iliba do fim desta história, nem é por si só factor justificativo das acções que a seguir vou narrar; sei-o agora enquanto escrevo.
Espreitei pelas escadas, não vi nenhum sinal do exterminador, subi dois andares e não acreditei no que os meus mostravam. Mas estou a adiantar-me na história, está-se a tornar num hábito esta ânsia de tudo revelar. Tenho de serenar, não posso omitir nenhum dos factos importantes, dados reveladores, informações fulcrais. Volto então à porta do palácio onde o exterminador acaba de chegar. É um homem gordo com a barba por fazer uma camisa desabotoada pelo terceiro botão um cheiro agridoce de suor seco. Cumprimentamo-nos e logo começou a falar: “Isto é muito grande, vai precisar de cinco ou seis passagens.” Abro as portadas, deixo-o palrar. “Isto dos bichos tem que se lhe diga.” ”Eles sabem quem eu sou, já me conhecem”. Pousa no chão uma botija à qual prende duas mangueiras entrelaçadas. “Tenho de fazer a mistura, o segredo está na mistura, dez de água para uma dose de veneno.” Desculpei-me e sai coçando as canelas, ele lá ficou a esguichar os cantos. “Duas horitas”, disse. Comprei o jornal e sentei-me num banco de jardim a desfolhar as páginas. Para Novembro o dia estava bem solarengo; ao fundo do jardim duas crianças corriam atrás de um cão sorridente.
Acordei sobressaltado com um arrepio na espinha, uma hora e meia tinha passado. Decide voltar ao palácio para ver como ia o trabalho de extermínio. Quando abri a porta não ouvi o zumbido da máquina que misturava a água com o veneno. Subi ao primeiro andar e nem sinal do exterminador. As escadas rangiam a cada passo e comecei a sentir comichões nas costas. Gritei, mas só a minha voz e depois o eco da minha voz rompeu o silêncio. Virei pelo corredor que ficava do lado direito de quem sobe as escadas; um velho candelabro balouçava no tecto. Abri a primeira porta do lado esquerdo e nada, tirando um velho colchão encostado numa parede onde as traves de madeira espreitavam. Continuei a andar mas os bichos invadiam a minha roupa interior e a comichão era quase insuportável. Cheguei ao fim do corredor e abri a porta; uma velha cómoda tapava a janela e um velho retrato envolto em teias de aranha, sufocava num caixilho dourado demasiado grosso. Comecei a correr de volta às escadas. Gritei. Ganhei coragem para subir ao segundo andar. Agora o meu corpo era um amontoado de bichos que me cercavam e comiam. Abri a primeira porta que encontrei na esperança de encontrar uma janela. Gritei. Ele estava caído no chão, mas não o conseguia ver, tal era a quantidade de percevejo, mosquitos, aranhas, pulgas, amontoadas sobre o deformado cadáver. Gritei por ele e depois corri pelas escadas abaixo. Passei as mãos pela cara e uma quantidade de bichos caíram e logo se esconderam em recônditos buracos, à medida que descia, fui deixando roupa pelo caminho. Uma escada não aguentou a meu peso desesperado e cedeu por baixo do meu pé que ficou preso. Estava deitado no chão com a cara no soalho e via os bichos a aproximarem-se com as suas pequenas tenazes. Tentei soltá-lo. Fiz mais força e a madeira cedeu rasgando uma boa parte da minha canela. Esfreguei o cabelo até ao átrio. Abri a porta da rua e sai para a rua, ainda sacudindo a roupa que me restava. Os insectos não pareciam interessados na luz do dia e vi-os a fugir por baixo da porta para o negrume do palácio.
O exterminador estava morto. Não tive culpa como podia eu saber? Foi no meio desse reboliço cerebral, que a ideia surgiu. Peguei no telemóvel e telefonei aos gémeos. Argumentei que ambos tinham de vir porque o futuro do empreendimento dependia da sua presença e disse mais algumas coisas que tinha a certeza os convenceria. Fui ao café, tirei a roupa na casa de banho e esmaguei com raiva alguns insectos desprevenidos. Voltei à porta do palácio e aguardei uma meia hora até o Mercedes parar em frente. “Que urgência é essa?”, “Não consegue resolver nada?”, “E para isso que lhe pagamos?”. O exterminador queria falar com eles, disse, estava no terceiro andar. “Temos de subir lá em cima? Ele não pode vir cá em baixo?”, “Quer mais dinheiro de certeza, o gajo quer mais dinheiro!” Encolhi os ombros. Eles entraram. Ainda ouvi os seus resmungos e os passos pelos lanços das escadas. Esperei mais dois minutos e fechei o palácio às chaves. Depois apanhei o autocarro para casa de onde agora escrevo esta história. Tomei um banho, fechei as persianas e arranjei uma desculpa para a mulher. Não sei se ainda estão vivos, não sei de nada e não vou sair de casa para descobrir, pelo menos até alguém bater à porta e disser que existe esperança para mim.

1 comentário:

Nuno Vieira disse...

tá feito, agora só falta a segunda de mão...

:)