quinta-feira, junho 16, 2005

Para lá da noite

Quando acordei ela ainda lá estava. A cabeça pousada na almofada e os cabelos enrolados nos meus. Não me mexi. Fingi ser uma pedra para a não acordar. Os lençóis subiam pelas pernas e pousavam na barriga, deixando a descoberto o umbigo, uma pequena flor, lindo como um biscoito cru. Escorreguei pelo colchão e beijei-lhe o útero. Mexeu-se. Por vezes, quando suspirava assim no sono, recordava-me aquela que já não volta, aquela partida de mau humor, um fundo seco de um poço de lágrimas, daquela que já não volta. Não tenho ilusões, quando acordar, a voz deste corpo não é o dela, recuso ser enganado, quero ser enganado. Passo-lhe a mão pela face e enrolo o indicador num fio de cabelo. Sei que não és tu, mas podíamos fingir, diz que sim e eu fico, ando pela tua casa de roupão e preparo o pequeno-almoço que te levo à cama numa bandeja de carinho. Podemos tentar se quiseres. Suspira. Beijo-lhe as mãos. Se cortares um pouco o cabelo e deixares de pintar os lábios nesses tons de vermelho, talvez o perfume dela ajude. Eu deixo-me enganar se quiseres. Passo o peito do pé pela coxa morna de sono. Puxo os lençóis para baixo e ela estremece, ainda quente. A que não volta tinha mais cabelos, uma farta cabeleira em segredo. Se eu te pedir, deixas crescer o cabelo do Amor? Podíamos tentar se a luz, teimosa, não insistisse em entrar pelas frinchas da persiana e os seus raios me devolvessem a tua cara por completo, que não é a dela. Deixo cair a perna da cama, depois rolo um pouco o corpo até estar no limite e com um silêncio de caçador, pouso ambos os pés no chão e escorrego até à casa de banho. Este cheiro não é meu, este odor que fica aqui não é meu. Podíamos tentar se não fosses tão alta. Olho-me feio ao espelho. Hesito. Volto ao quarto e encarcero a luz da manhã. Sem luz tudo se encaixa, a tua respiração é-me familiar.

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