A chuva chegou com força demoníaca varrendo a cidade da sujidade. Escorriam rios de água e lama pelas ruas desertas. Cães vadios remoíam o lixo e candeeiros com luz trémula perfilhavam os passeios em legiões de fantasmas. A mulher tinha desaparecido o emprego era uma farsa. Rajadas de vento levantavam nuvens de folhas do chão que se erguiam no ar em pequenos espirais. As mãos geladas a custo tiraram a chave do bolso; a fechadura acolheu a velha amiga. Subiu as escadas carcomidas de húmidade e maus-tratos. Onde estava alguém? Sentiu uma estranha necessidade de fazer algo por aquele pobre prédio, talvez envernizar as escadas. Podia arranjar o soalho de casa. O cheiro da intimidade misturava-se com o ar fresco da janela aberta. Lavou a cara com água morna e deixou-se ficar a olhar ao espelho até os olhos, o nariz e a boca se começarem aos poucos a deformar e uma massa de carne aparecer reflectida; uma outra face no espelho, neste momento era a dela. Tirou a garrafa do saco e deu uma golada; a pressa de chegar a casa desapareceu, agora queria sair, mas para onde ir; a alma rota esvazia. Não havia preparação para tal coisa. O cheiro a mofo dos livros nas estantes, o papel na parede, o sofá restaurado, tudo aquilo era dual. Não demorou muito tempo até M. pegar num martelo, numa chave de fendas e começar a arrancar os tacos do chão.
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